Crescemos para nos tornarmos no adulto que toma conta de nós….

Estaremos a ser o adulto que a criança em nós precisa e com quem a criança floresce e é livre ou estaremos a repetir padrões do passado e a perpetuar o que a criança sentiu na eterna esperança de nos darmos a oportunidade de fazer diferente?

A criança interior é o eco da criança que já fomos. Todos nós temos uma história e fomos influenciados pelo nosso contexto familiar e social, pelos eventos que se passaram. A nossa criança guardou memórias de tudo. Guardou memória dos mecanismos de defesa que usou para lidar com a adversidade, bem como das competências e das crenças. Guardou uma palete de emoções e suas influências. Algumas das estratégias que desenvolveu serviram aquele momento e foram vitais e essenciais, mas por habituação e repetição muitas vezes continuam a ser utilizadas no presente, quando na verdade já não são necessárias ao adulto. São sim, necessárias à criança que habita em nós. São automatismos ativados no presente por experiências emocionais com o mesmo significado emocional que tiveram para a criança no passado (rejeição, abandono, abuso, violência, medo, separação, ambivalência….)

Em Psicologia denominamos de Estados de Ego. A criança interior equivale a um Estado de Ego infantil e quando esse Estado de Ego domina, significa que estamos a repetir um padrão que experimentámos na nossa infância.

A criança interior, essa parte de nós, faz com que muitas vezes, sem consciência façamos escolhas que determinam que o que aconteceu no passado volte a repetir-se no presente ou que interpretemos o passado e a intencionalidade de outros como algo que já experienciámos no passado.

Por exemplo: Um adulto rejeitado na infância pode interpretar comportamentos como demorar na resposta a uma mensagem do seu companheiro como rejeição. Pode escolher parceiros ausentes ou indisponíveis para o compromisso. Poderá surgir com frequência o medo de ser abandonado. É um adulto que tende a rejeitar a sua criança interior na medida em que pode ter construído a crença de pouco valor pessoal e não merecimento ” és mesmo palerma“; ” quem é que te pode querer”.

Há inúmeros mecanismo de defesa que podemos desenvolver na nossa infância. O conformismo, a adaptação, o evitamento do conflito e consequentemente agradar os outros. E assim, a criança passa a estar acorrentada a todas as estratégias que adotou para conseguir o amor e para sofrer menos com a rejeição….com isso a criança perde luz, vida, liberdade e alegria. SER quem se é torna-se cada vez mais difícil.

Um narcisismo exuberante pode também ser um mecanismo para lidar com crenças auto-limitantes, bem como a desqualificação dos outros, a agressividade….

“Tudo o que está “errado” connosco começou por ser um mecanismo defensivo na nossa infância” Gabor Maté

A repetição do padrão é a repetição da esperança da mudança ” ainda vão gostar de mim”; “vou provar o meu valor“…

Reencontrar a criança interior é um processo profundo que envolve a vontade de reencontrar a criança ferida, abraçá-la, libertá-la, como se pudéssemos dizer-lhe: Não precisas de continuar a fazer o que fazias. Já não estás no passado. Agora eu estou aqui, sou eu que tomo conta de ti e liberto-te para seres livre, seres quem és. Dar-lhe colo e espaço para sentir tudo o que ficou por sentir, dizer, expressar. Claro que isso implica entrar em contacto com as feridas. Tal como as feridas físicas, precisamos de mexer nelas para as tratar. As emocionais também têm de ser vistas, reconhecidas.

Não podemos mudar os acontecimentos do passado, mas podemos mudar a atitude e a perceção cognitiva e emocional dessas experiências integrando-as de forma saudável na nossa existência. Tomar consciência e aceitar o passado é essencial para se conseguir colocar o passado onde ele pertence e retirá-lo do presente.

Ao fazer isso e ao alterarmos as nossas crenças limitantes, criamos a disponibilidade emocional para fazermos escolhas diferentes e mais gratificantes. Não por defesa, não por medo, mas por amor. Amor a quem somos. Por amor à nossa criança interior.

Sem consciência das feridas emocionais, das crenças e memórias , essa bagagem controla os nossos comportamentos, escolhas, emoções e pensamentos e geram sintomas, conflitos, padrões relacionais que prejudicam a nossa qualidade de vida.

“A criança que fui chora na estrada;

Deixei-a quando vim ser quem sou

Mas hoje, vendo que o que sou é nada,

Quero ir buscar quem fui, onde ficou.”

Fernando Pessoa

Tema das conversas com a Carla Alegre na Rádio Concelho de Mafra às quintas 10:30. Dia 5 de Novembro 2020


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