Quando o mundo sangra, o que pode uma só pessoa?

O conflito entre Israel e a Palestina volta a expor, diante de nós, uma ferida aberta. Inúmeras vidas perdidas, famílias destruídas, ódios antigos que se reencenam num presente sem trégua. E, no meio de tudo isto, é inevitável a sensação de impotência: o que posso eu, apenas uma pessoa, perante tamanha dor?

Ilustração Cátia Faísco da séria "O Céu é um lugar na Terra"
Ilustração Cátia Faísco da série “O Céu é um lugar na Terra”

Num mundo em que as guerras rebentam diante dos nossos olhos e dos nossos ecrãs, muitas pessoas sentem-se impotentes.
Há quem carregue até uma culpa silenciosa por ter paz, por estar bem, por continuar a viver enquanto outros perdem tudo.
Este texto nasce desse desconcerto: o que podemos fazer quando parece que não podemos fazer nada?
E se, afinal, houvesse algo que começa em nós?

Israel ergue-se como um povo marcado pelo trauma da perseguição, que aprendeu a sobreviver protegendo-se, por vezes, em excesso. A Palestina, fragmentada e exausta, vê-se constantemente empurrada para os limites da dignidade. O Hamas, parte violenta e extrema, compromete o todo e esconde-se atrás da dor colectiva.

Ambos os lados vivem histórias que pedem justiça. Ambos carregam traumas que ainda não encontraram espaço para ser escutados.

Este não é só um conflito político. É um sistema ferido.

Como terapeuta, reconheço os padrões: feridas transgeracionais, medo, exclusão, rigidez. Um sistema onde todos se sentem vítimas e onde ninguém acredita que será escutado se baixar as armas e talvez esse seja o ponto mais essencial para compreender a complexidade humana por trás de uma guerra que é, antes de tudo, um lamento coletivo.

Vamos então por partes, como numa escuta terapêutica sistémica:

Israel: o filho que aprendeu a nunca mais ser fraco

O trauma do Holocausto deixou marcas fundacionais. Não apenas o medo de ser aniquilado, mas a convicção de que só a força garante a sobrevivência. Israel tornou-se, aos olhos de muitos judeus, o “pai protetor” da diáspora, o escudo prometido. Mas esse escudo tornou-se uma arma.

E quando a dor antiga guia o presente, pode tornar-se cega à dor que causa.

Palestina: o filho empurrado para o porão

Sem terra, sem exército, muitas vezes sem voz. Os palestinianos vivem há décadas uma experiência de desumanização, postos sob ocupação, controlados, com territórios fragmentados e um sentimento permanente de injustiça.

E quando um povo sente que o mundo o esqueceu, grita de todas as formas, às vezes justas, outras violentas.

O Hamas: o irmão que age em fúria e se esconde atrás da dor alheia

O Hamas representa uma parte do povo palestiniano, mas não o todo. É como um “self extremo” num sistema familiar em crise: sente-se chamado a defender, mas fá-lo com estratégias destrutivas. E com isso compromete o todo.

Mas o erro do Hamas justifica a punição coletiva? Aqui, a ética entra em tensão com a política de segurança.

O mundo: o vizinho que assiste, comenta… e vende armas

Possivelmente haverá jogos de poder mais profundos geoestratégicos, económicos, energéticos. E isso torna a solução mais lenta do que a dor exige. Muitas vezes, quem poderia intervir com eficácia prefere manter o equilíbrio do caos.

Padrão transgeracional repetido?

  • A vítima de ontem torna-se agressora defensiva.
  • O oprimido de hoje sente-se sem nada a perder.
  • Ambos presos numa narrativa de “nós contra eles”.

Como terapeutas, sabemos: enquanto não houver espaço para a escuta da dor do outro, a repetição do trauma continuará.

Olho para isto como uma família ferida:

  • Israel: pai rígido, hipervigilante, ferido, que não confia no mundo.
  • Palestina: filho humilhado, zangado, sem espaço para crescer.
  • Hamas: parte exilada do sistema, extrema, mas emergente de uma dor ignorada.
  • Comunidade internacional: os avós impotentes que assistem ou impõem sanções.

Como se cura uma ferida assim?

Não sei como se resolve um conflito tão antigo e complexo. Mas sei que não começa com ódio nem com indiferença. Começa na escuta. Na escolha diária de não alimentar discursos de violência. Na forma como educamos os nossos filhos. Na maneira como nos mantemos humanos, mesmo quando tudo nos convida ao cinismo ou à desistência.

No fundo, o que talvez esteja mesmo em jogo aqui é o reconhecimento profundo de que a dor do outro também é real.
E isso… só acontece quando ambos os lados voltarem a ver-se como humanos, não apenas como inimigos.

E se víssemos a guerra como um sistema com trauma complexo?

A Psicologia diz-nos:

  • O trauma não se resolve com lógica nem castigo.
  • Só se dissolve com relação segura, tempo, escuta, reconhecimento do dano, e até luto partilhado.
  • Sem rituais de perdão e reintegração, a exclusão repete o trauma.

Talvez a Psicologia devesse estar sentada nas Nações Unidas. A abrir sessões de escuta. A mapear partes internas. A traduzir ódio em dor. A resposta, acredito, começa onde sempre começaram as grandes transformações: de dentro para fora, pessoa a pessoa, pelo exemplo, com amor. Não podemos mudar o mundo. Mas podemos recusar deixar que ele nos endureça.

Talvez não saibamos como começar .
Mas sabemos como não desistir aqui.

Este é um convite a não fechar o coração.
Mesmo quando o mundo sangra.

Ilustração de Marcus Severi “Unica Salida”


Comentários

Deixe um comentário